Um relato no coração da mobilização na Argentina

Artigo para o jornal Brasil de Fato
Buenos Aires (Argentina) | 17 de janeiro de 2024 

Militantes brasileiros, Mariane e Lucas, estão na Argentina para acompanhar e cobrir as mobilizações da greve geral do dia 24 de janeiro de 2024 convocada pelas centrais sindicais do país, em meio aos avanços da extrema direita, ao colapso social, a queda do peronismo e ao desenvolvimento da luta de classes. Confira este forte relato de dias de mobilização no país vizinho.

Contexto social e econômico: Milei ganha as eleições, anuncia ajustes a medida da repressão

Os militantes da Revolução Socialista (Psol) de Curitiba chegaram à Argentina no dia 20 de dezembro de 2023, ao mesmo tempo em que organizações de esquerda multissetoriais e unificadas iniciavam a primeira marcha contra os ajustes políticos e econômicos iniciais do governo de Javier Milei.

As mobilizações de final de ano são uma tradição em memória do “Argentinazo” de dezembro de 2001, marco da luta de classes na Argentina em que os trabalhadores derrubaram cinco presidentes em apenas 11 dias, alterando as dinâmicas partidárias do regime político da época. A manifestação foi uma resposta corajosa dos militantes e do sindicalismo combativo ao então recente protocolo antiprotestos, anunciado no dia 14 de dezembro de 2023 pela nova Ministra de Segurança, Patricia Bullrich, e ao Plano Motosserra anunciado pelo Ministro da Economia, Luis Caputo, no dia 12 de dezembro.

O protocolo de Bullrich antecipou o caráter autoritário do governo e a preocupação com a insatisfação da população com as próximas medidas que anunciaria na mesma noite do dia 20, visto que possibilita punições e uso de força não letal a qualquer piquete (corte de rua) e sanções aos manifestantes identificados. As medidas de Caputo também geraram descontentamento em poucos dias de governo, visto que houve uma desvalorização do peso argentino frente ao dólar em mais de 100%, proposta de redução de ministérios da Educação, Cultura e Ciência e Tecnologia, a não renovação de contratos de trabalhadores públicos, fim de subsídios para transporte e energia e a interrupção de novas licitações para obras públicas. O próprio Ministro, em seu anúncio, comentou sobre os impactos negativos e o novo salto inflacionário que suas medidas representavam.

Horas após o início das marchas, que contaram com a repressão policial prevista no protocolo Bullrich, Javier Milei anunciou em cadeia nacional 30 pontos de um mega Decreto de Necessidade e Urgência (DNU) que entraria em vigor no dia 29 de dezembro, contando com revogações e alterações em mais de 300 leis, reformas e ataques diretos aos direitos trabalhistas, pequenos e médios produtores e a abertura de um espaço sem precedentes para privatização de empresas estatais argentinas.

Esta medida autoritária e neoliberal, favorecendo grandes empresários e interesses estrangeiros, prejudica a população ao eliminar leis de proteção contra especulação imobiliária e escassez de alimentos, reduzir salários e direitos sindicais, e até mesmo propõe a possibilidade de pagamento de salários em produtos como banana, carne ou bitcoin. Além disso, a privatização de empresas públicas estratégicas, a liberalização do comércio exterior e a redução do gasto público afetam gravemente serviços essenciais como educação, saúde e programas sociais.

Com a vanguarda dos movimentos sociais nas ruas, já se sentia que Protocolo de Bullrich havia fracassado e que a população não hesitaria em sair às ruas para se rebelar contra o mega DNU. Ao toque das panelas argentinas, uma nova jornada de "Cacerolazos" (panelaços) se estendeu pela madrugada do dia 20 e todo o dia 21, quando milhares de manifestantes ocuparam praças, ruas, frentes de prédios institucionais em Buenos Aires, Córdoba, Santa Fé e outras províncias. O povo nas ruas tocava suas panelas e frigideiras e tinham como gritos de ordem denúncias ao governo Milei, anúncios de um novo Argentinazo e clamores para a organização de uma greve geral e plano de luta ativa para os primeiros meses de 2024.

Dia 27 de dezembro, Javier Milei anunciava mais um avanço de sua política a favor dos ajustes contra a classe trabalhadora e a economia nacional, em direção à abertura do país para o capital estrangeiro. Um mega projeto de 351 ajustes, chamado de Ley Ómnibus, contempla a privatização de todas as empresas estatais, elevação de penas a manifestantes e greves, suspensão do reajuste atrelado à inflação de aposentadorias, flexibilização de normas ambientais e reformas na educação.

O projeto foi encaminhado ao Congresso por Milei, estabelecendo medidas repressivas em relação a manifestações e restringindo reuniões em espaços públicos. Segundo a proposta, os cidadãos devem solicitar permissão ao Ministério da Segurança com 48 horas de antecedência para realizar encontros envolvendo três ou mais pessoas. O Ministério da Segurança ganha amplos poderes para rejeitar ou modificar as convocações, além de impor duras sanções aos organizadores e participantes.

A exigência de autorização prévia para encontros públicos e a concessão de amplos poderes ao Ministério da Segurança, incluindo a capacidade de modificar ou negar convocações, além das duras sanções impostas aos participantes, revelam um avanço autoritário que vai além dos limites da democracia burguesa. A liberdade de expressão, reunião e protesto é crucial para a participação cívica e a manifestação de insatisfação política. No entanto, essas medidas apenas fortalecem o poder do Estado para silenciar dissidências e reprimir movimentos sociais. Em um momento em que discursos e propostas visam reduzir o papel do Estado em favor do capital privado, as propostas de Milei evidenciam as limitações da democracia burguesa e a quem o Estado de fato corresponde nesse contexto.

Durante os dias que se sucederam ao “cacerolazo” de 20 de dezembro, marchas e assembleias populares eclodiram pelo país, reivindicando uma posição das centrais sindicais CGT e CTA e o planejamento para uma greve geral.

Após o novo choque e a pressão das bases, as centrais sindicais decidiram convocar uma greve geral para o dia 24 de janeiro. Nesse sentido, entramos no mês de janeiro com a perspectiva de uma grande mobilização para um ano repleto de lutas, com assembleias de bairros acontecendo de forma espontânea por todo o país e conduzindo os trabalhadores às mobilizações para a greve e demais eventos.

Assim como em 2001 e, também, em 2017, quando a classe trabalhadora derrotou o projeto de Macri para uma reforma da previdência, o povo argentino se vê mais uma vez em uma jornada de avanço na sua luta de classes. Diante a frustração que vive o povo trabalhador com o peronismo, direção histórica e que hoje perdeu apoio por ter aplicado políticas de arrocho e destruição de direitos conquistados. A esquerda está diante um grande desafio, a construção de uma alternativa para a saída da crise que seja popular, para a classe e com a classe.

Para além da crise econômica: como o decreto de necessidade e urgência na Argentina (DNU) propõe uma mudança de regime no país.

Em 2001, protestos e mobilizações de proporções históricas na Argentina levaram o então presidente Fernando De La Rúa a renunciar no mesmo ano. No dia 20 de dezembro, ocorreram manifestações em massa em Buenos Aires e outras cidades importantes do país, como resposta à grave crise econômica caracterizada por altos níveis de desemprego, pobreza e uma recessão profunda. O congelamento dos saques bancários gerou indignação e desespero generalizado, levando milhares às ruas para expressar sua insatisfação.

A crise na Argentina em 2001 foi parte de um contexto maior na América Latina, onde vários países enfrentaram desafios econômicos e políticos semelhantes, em decorrência da influência dos Estados Unidos na economia dos países latinos. Isso representava o início de uma política neoliberal, que se apresentava como uma alternativa ao modelo ditatorial, disfarçada de democracia popular. Algo semelhante ao congelamento dos saques bancários na Argentina já havia ocorrido durante o governo Collor no Brasil, com o congelamento das poupanças em um momento em que o país passava por sua pior crise inflacionária. Eleito em 1989, Collor foi o primeiro presidente eleito por voto direto após a ditadura.

Seu governo foi marcado por políticas de suposto combate à inflação, mas que levaram a uma série de privatizações e de escândalos de corrupção que levaram ao seu impeachment em 1992. Com a democracia ainda em seus estágios iniciais e fragilizada, a suposta punição a Collor se deu por meio de processos institucionais. Entretanto, sua remoção do cargo presidencial não desencadeou uma transformação significativa na estrutura política ou econômica do Brasil, mantendo-se a aplicação de políticas neoliberais mesmo após seu afastamento. Sendo o governo de Fernando Henrique Cardoso, entre 1995 e 2002, o que mais se destacou pelo processo de privatização de empresas no Brasil. Durante esse período, o país passou por um amplo programa de privatizações, com destaque para empresas estatais de setores como telecomunicações, siderurgia, energia e mineração.

A Argentina, em 2001, não esperou que os meios institucionais iniciassem o processo. O país afastou cinco presidentes em uma única semana. Após a renúncia de Fernando De La Rúa, a presidência foi assumida por vários líderes em um curto período de tempo, refletindo a turbulência política e a falta de estabilidade no país. O cargo de presidente passou por cinco indivíduos em uma semana, terminando, finalmente, com Eduardo Duhalde.

A renúncia consecutiva de vários presidentes em tão pouco tempo foi um sintoma do colapso do sistema político diante da insatisfação generalizada da população. Como resposta às reivindicações nas ruas, Eduardo Duhalde tomou medidas como a desvalorização do peso argentino, rejeitando o domínio do dólar e buscando recuperar a autonomia econômica do país. Esse momento de revolução democrática foi fruto da força e da persistência das vozes nas ruas, das assembleias populares e das organizações de base que se uniram. Nos governos seguintes, ocorreu a reestatização de empresas, e as mobilizações populares perseveraram nos anos seguintes, apesar de prejudicadas pelo reformismo. Isso foi claramente evidenciado por manifestações significativas em prol de questões importantes, como o movimento “Ni Una Menos” em 2015, que combatia o feminicídio, e as grandes manifestações massivas pelo direito ao aborto em 2018, que culminaram na conquista desse direito.

Essa constante mobilização popular foi fundamental para assegurar conquistas. Enquanto as estruturas institucionais, principalmente o peronismo que captou diferentes setores para a política de defender o governo e desmobilizar a classe e os setores populares. As manifestações nas ruas se tornaram uma maneira crucial de pressionar por mudanças reais, garantir direitos, e reivindicar uma nova forma de organização. A população argentina, por meio dessas mobilizações, buscou não apenas obter direitos e justiça, mas também desafiou a institucionalização burguesa que servia aos interesses de poucos em detrimento do coletivo.

Essa cultura de mobilização não apenas moldou políticas e legislações, mas também incendiou o fervor e a vitalidade das demandas populares. As mobilizações lembram aos governos que o povo está vigilante. Isso foi vital para fortalecer a consciência coletiva, mantendo acesa a compreensão de que mudanças reais só surgem por meio da mobilização e ação direta. As constantes mobilizações semanais lideradas pelas Mães da Praça de Maio demonstram como essa luta permanece presente na cultura e rotina do país, especialmente na capital. Desde 1983, elas organizam marchas semanais, manifestações e eventos especiais em datas significativas, como aniversários de desaparecidos e marcos importantes na luta pelos direitos humanos.

Compreender esses aspectos da cultura Argentina é fundamental para contextualizar a reação popular ao governo de Milei, que teve seu início nos eventos de 20 de dezembro de 2023. A marcha anual, que serve como um lembrete de que a população permanece disposta a lutar, assumiu um significado especial ao marcar a primeira manifestação contra o recém-assumido governo de extrema direita de Milei, que assumiu o cargo apenas 10 dias antes.

DNU, Lei Omnibus e políticas de Milei

Segundo a Liga Internacional Socialista, representada na Argentina pelo MST (Movimento Socialista dos Trabalhadores), essa política não é algo inédito, embora com diferentes características. O governo está determinado a acelerar mudanças estruturais nos próximos meses, e a implementação do mega DNU expõe a face autoritária do governo, que busca governar por decreto com os interesses da grande burguesia e do FMI, ao mesmo tempo em que adota políticas repressivas. A resposta popular contra essas ações repressivas foi clara, com milhares de pessoas na Plaza de Mayo desafiando as forças de segurança. Isso destaca a necessidade urgente de organizar a classe em espaços de discussão e planejar estratégias para enfrentar essas questões desde o início.

A ascensão de Milei ao cargo mais importante do país expõe as consequências dos anos de políticas de ajustes fiscais contra o povo por parte dos governos peronistas e kirchneristas anteriores. Esses governos foram responsáveis pela desmobilização popular e burocratização de espaços de luta, como sindicatos e universidades, contribuindo para a situação econômica atual.

A inflação em 2023 atingiu 148,2%, evidenciando os impactos dessas políticas. Desta forma, a eleição de Milei não deve ser vista apenas como uma responsabilidade individual de seus eleitores, mas sim como um reflexo do descontentamento de uma classe que foi traída durante anos por um governo autodenominado de esquerda, que governou levando adiante um brutal ajuste ao povo. Representando assim, um retrocesso político para uma nação acostumada a reivindicar seus direitos nas ruas.

O fracasso total dos governos peronistas, especialmente de Alberto Fernández nos últimos quatro anos, demonstrou que o movimento está definitivamente longe do curso progressista que muitos acreditavam ser possível. É necessário abrir caminho para um novo projeto político com a esquerda. Se as promessas de geladeira cheia causaram mais inflação, subserviência ao FMI e alienação dos ministérios mais importantes para a população feminina e dissidente da Argentina, é claro que a porta foi aberta para figuras como Milei, negadores de genocídios históricos e anti-direitos ao longo de toda a linha.

A alternativa necessária encontra suas premissas nas ruas. Como em 2001, os argentinos são detentores da espontaneidade de luta que enfrentam todos os governos que estiveram conectados com as instituições burguesas e a favor do capital estrangeiro. A diferença de agora e o caminho aberto para 2024, é a possibilidade das mobilizações alcançarem um posto na direção da classe trabalhadora e nas decisões dos próximos anos.

O novo avanço do árduo processo da luta de classes argentina somente poderá superar o histórico saque e estrangulamento da nação se for determinado pela capacidade de organização e direção de organizações políticas genuinamente conectadas com a classe e com o movimento internacional de luta pelos povos e pela construção do socialismo. Ao mesmo tempo, que os trabalhadores consigam construir com suas mãos e mentes calejadas de crise, um futuro de abundância para todos e atendimento das suas necessidades econômicas e de produção.

Autora: Mariane Regina Salles Panek e Lucas Caron
para o jornal Brasil de Fato - Edição: Pedro Carrano
@panekpsi
Psicóloga Comunitária
CRP 08/32713