Promovida por organizações e instituições atreladas à categoria, como o Sistema Conselhos e o Sindicato, "Psicologia é com Psicólogos" é uma campanha que defende a regulamentação de campos de atuação exclusivos para profissionais da Psicologia com registro profissional ativo. O objetivo seria garantir que práticas sejam exercidas por profissionais com formação específica, com uma ênfase massiva maior na psicoterapia. A campanha geral é amplamente aprovada pela categoria, mas, existem distintas leituras e defesas sobre o papel da psicologia na sociedade e o teor da campanha.
Alguns defensores têm reduzido a discussão a uma ideia de “saúde mental”. Tratam esse campo como se fosse um mercado, e como se esse mercado fosse propriedade exclusiva da Psicologia. Nessa lógica, “fazer saúde mental” se resumiria à prática da psicoterapia, aos diagnósticos e à emissão de laudos. Ainda que nem sempre digam isso de forma explícita, é o que transparece em seus argumentos e comentários. Uma concepção restrita, mercantilizada e elitista, que reduz o sofrimento humano a um produto a ser comprado e vendido, e que ignora a complexidade do que realmente significa falar de vida, saúde e sociedade.
Esse olhar desconsidera outras formas de atuação e apaga epistemologias diversas sobre o bem-estar coletivo, mantendo a exigência da eterna referência às raízes de uma psicologia europeia, sem abertura para outros modos de pensar e de fazer no território. Saberes ancestrais são tratados como “pseudociência” e outras formas de compreender as complexidades do sofrimento humano são descartadas. Ao mesmo tempo, a psicoterapia é colocada como instrumento de monopolização da indústria dos diagnósticos, sem questionar a própria lógica de patologização da experiência humana.
Soma-se a isso o desrespeito ao caráter interdisciplinar do cuidado, quando acolhimentos históricos de outras áreas são reduzidos ao "fazer indevido de psicoterapia”, em vez de reconhecidos como práticas legítimas e complementares. Trata-se de um modelo que defende quase um “mercado protegido”, restrito aos psicólogos, sem abertura para o diálogo com outros campos e saberes. Aplicam uma lógica de laboratório a uma complexidade imensa que é lidar com comportamento, experiências e fatores humanos e sociais.
Existe uma outra defesa, de quem entende a extrema necessidade da regulamentação dos campos de trabalho da Psicologia, não reduzindo a discussão apenas à psicoterapia.
Pelo contrário, reconhecem que a atuação da Psicologia precisa, inclusive, superar o fazer apenas clínico e a emissão de laudos e diagnósticos, entendendo as necessidades do momento histórico e dos territórios da perspectiva do povo trabalhador, e não do mercado e da burguesia da saúde. Essa perspectiva conecta a regulamentação aos direitos trabalhistas de uma categoria cada vez mais sucateada e uberizada, e defende que o debate ocorra junto à necessidade de políticas públicas que garantam atuação nas diversas áreas da Psicologia, como educação, psicologia comunitária, saúde coletiva, entre outras, e, inclusive, a psicoterapia.
Entende-se que Psicologia não é sinônimo de Psicoterapia, sendo esta apenas uma das áreas de trabalho, que precisa sim de regulamentação e de regras específicas para proteger a sociedade de abusos e controles indevidos, como ocorre com a chamada “psicoterapia cristã”, coaches e outras.
O mesmo vale para diagnósticos e laudos, mas a compreensão é que, enquanto estiverem sob monopólios de convênios e da burguesia da saúde internacional, sempre limitarão a ética do fazer psicológico e transformarão sofrimentos complexos apenas em lucro. Pode sim ser a psicoterapia exclusividade da psicologia, mas até o entendimento sobre o que é, de fato, psicoterapia, precisa sair das bolhas da psicologia e incorporar os saberes do povo trabalhador.
Enquanto a psicoterapia ainda for reduzida às abordagens europeias, o povo ficará à mercê de pessoas de má intenção, pela falta de conhecimento sobre o assunto antes de iniciar um processo.
Por isso, isso deve ser um dos fatores da campanha, e não o ponto central, e defende-se a importância do fortalecimento de um Estado que represente as necessidades do povo e de um Sistema Conselhos e Sindicatos que de fato representem a categoria.
Isso para que a campanha não se reduza apenas a uma manobra burocrática que, na prática, vai deixar a psicoterapia apenas para psicólogos, mas que ainda vão permanecer ganhando 20 reais por sessão, sofrendo violência institucional, pejotização e violações trabalhistas. Enquanto a Psicoterapia vai ser restrita apenas a quem tiver dinheiro pra pagar, em uma sociedade com um dos maiores níveis de desiguladade social e concentração de renda da história do capitalismo moderno. Além disso, muitos desses trabalhos acabam sendo realizados por (essas sim) pseudociências regulamentadas pelo Estado, ocupando lugares que temos propriedade científica para estar, como é o caso de religiosos conservadores, coaches e consteladores familiares, que ocupam campos de trabalho que fazemos quase que marginalmente em voluntariados e contratos precários, enquanto eles acumulam poder e dinheiro.
É inegável que esse debate não pode acontecer como se a Psicologia fosse alheia ao universo do trabalho e à conjuntura social, como ainda acreditam alguns dentro da profissão. Acabou o tempo dos métodos pequenos burgueses desse fazer, que cada vez mais se proletariza conforme as necessidades sociais e precisa estar junto do processo de luta de classes. Do contrário, permanecerá disputando apenas uma parcela da hegemonia do poder científico, como fez ao longo da história. É justamente com essa lógica que a Psicologia Comunitária, na América Latina, tem a tarefa de romper, em articulação com os territórios oprimidos pelo capitalismo global.
Mariane Regina Salles Panek
@panekpsi
Psicóloga Comunitária
CRP 08/32713