A psicologia latino-americana nasce da urgência de compreender o ser humano não como um indivíduo isolado, com uma subjetividade universal, mas como ser histórico, social e político, constituído nas relações e nas contradições da realidade em que vive. Inspirada pelo materialismo histórico-dialético, essa psicologia rompe com a neutralidade e assume seu caráter ético e transformador. Não busca adaptar as pessoas à desigualdade, mas compreender e atuar junto às comunidades nas condições concretas que produzem o sofrimento, reconhecendo que a saúde é um processo coletivo, complexo e enraizado nas dimensões sociais, culturais e econômicas.
No capitalismo, o sofrimento não nasce no vazio. Ele é produzido.
Produzido e necessário para sustentar a ideologia de um sistema que transforma vidas em mercadoria. Um sistema que precisa manter muitos na exploração para justificar o bem-estar de poucos. As relações desiguais e as políticas que produzem exclusão não são desvios: são condições estruturais de um modo de produção que precisa do adoecimento.
Por isso, você precisa acreditar que há algo errado com você, e não com o sistema e a estrutura. Desde a década de 1980, nomes como Silvia Lane, Paulo Freire, Maritza Montero, Martín-Baró e outros impulsionaram essa virada epistemológica e política, rompendo com a psicologia eurocêntrica e adaptativa, e afirmando uma ciência que se constrói no encontro entre teoria e prática, entre saber acadêmico e vivência.
Através do materialismo histórico-dialético, Pedagogia Popular e Educação Libertadora, articulava saberes, cultura e ação coletiva para fortalecer a autonomia e a luta dos povos oprimidos. Educador e filósofo, pioneiro da educação popular, Defendia que a educação pode ser prática política e revolucionária, voltada à conscientização, emancipação e transformação social. Ver o sofrimento descolado das condições estruturais já não responde às demandas do nosso tempo. A ciência que se limita a um indivíduo isolado com uma ideia de subjetividade universal, ignora que cada contexto é atravessada por história, território, classe, raça e gênero.
Socióloga e psicanalista, pioneira nos estudos sobre o racismo na sociedade brasileira nos primórdios das ciências sociais. Pesquisou relações raciais em São Paulo, articulando sociologia, antropologia, psicologia social e psicanálise crítica, mostrando como as estruturas sociais e econômicas moldam a vida e o sofrimento das pessoas. Foi educadora sanitária, professora e divulgadora científica.
Psicólogo social, atuou durante a guerra civil e ditadura. Criador da Psicologia da Libertação, via o sofrimento psicológico como resultado das condições sociais e explorações imperialistas. Inspirado pelo marxismo e Teologia da Libertação, unia análise crítica e práxis transformadora. Sua obra é central para a psicologia comunitária, conectando saúde e mobilização popular. Foi assassinado em 1989 por militares da ditadura.
Psiquiatra e comunista, foi presa e exilada pelo regime varguista em 1936. Ao retornar, desafiou o modelo psiquiátrico tradicional ao recusar eletrochoques, lobotomias e contenções. promovia tratamentos com espaços de liberdade, expressão e criatividade. Pioneira na luta antimanicomial, sua prática articulava cuidado coletivo e saúde mental libertadora, mostrando que o trabalho psicológico pode ser uma prática política e revolucionária.
Filósofo e líder quilombola, criticava o conceito de "desenvolvimento" imposto pelo capitalismo, que separa o ser humano da natureza, transformando-a em um recurso a ser explorado, Atrelando o sofrimento humano a isso. Defendia que a saúde está intrinsecamente ligada à preservação ambiental e à valorização dos modos de vida tradicionais das comunidades, propondo uma visão integral de saúde, natureza e coletividade.
Um dos principais nomes da psicologia comunitária e da libertação, através também do materialismo histórico-dialético, sua obra analisa como desigualdades, poder e participação política influenciam a saúde mental e o bem-estar coletivo. Desenvolveu métodos que articulam intervenção comunitária, mobilização popular e empoderamento social, fortalecendo a autonomia das comunidades e a transformação social.
Psicóloga social que atuou durante a ditadura militar, inspirada pelo materialismo histórico-dialético, Marx e Vygotsky. Desenvolveu uma psicologia voltada à classe trabalhadora e comunidades populares, denunciando a psicologia burguesa. Para ela, a práxis, união entre teoria e ação, é o centro do fazer psicológico, construindo uma ciência histórica, política e libertadora, guiada pela emancipação coletiva.
A psicologia tradicional, mesmo quando pretendeu ser neutra, cumpriu uma função social conservadora: manter a ordem existente e adaptar os sujeitos às condições dadas, em vez de contribuir para sua transformação. Ao patologizar comportamentos e emoções que expressam a contradição social, a psicologia se tornou instrumento de controle e normalização. Para romper com essa herança, a Psicologia Social comprometida com o materialismo histórico e dialético precisa recolocar o sujeito em seu contexto de classe, de gênero, de raça e de trabalho. É somente ao compreender o homem como ser socialmente determinado e determinante que se pode construir uma ciência psicológica verdadeiramente emancipadora. “Uma Psicologia Social Baseada no Materialismo Histórico e Dialético: da emoção ao inconsciente”, de Silvia T. M. Lane.
Ainda assim, grande parte da categoria segue presa a modelos ortodoxos, que reduzem o sofrimento a visões simplistas e descontextualizadas, silenciando as contradições sociais. Mas as ruas, as comunidades e os territórios continuam a lembrar que a psicologia precisa se reinventar. E que seu papel não é neutralizar o conflito, e sim compreendê-lo, se implicar nele e atuar pela transformação da realidade.
Mariane Regina Salles Panek
@panekpsi
Psicóloga Comunitária
CRP 08/32713