Desde Deleuze e Guattari, sabemos: toda análise é co-produção. Não existe sujeito isolado, nem escuta imune ao atravessamento. Qualquer intervenção — no consultório, na roda de conversa ou na assembleia — é produção conjunta de sentido entre forças. Quem escuta faz parte da cena. Não é observador externo, é peça da engrenagem. Em Mil Platôs, os autores afirmam: o desejo não é para ser interpretado, mas cartografado. Isso exige presença, envolvimento, afetação. O saber, aqui, não é instrumento de domesticação — é força de abertura.
Na Psicologia Histórico-Cultural, encontramos outro pilar: o sujeito é inseparável do mundo que habita. Com raízes em Vygotsky, Leontiev e Luria, e fundamentos no pensamento de Marx, essa abordagem entende que a consciência se forma nas relações sociais, nas condições materiais e nos embates da história. O sofrimento não é só interno: ele carrega contradições externas, políticas e econômicas. Não se trata de adaptar o sujeito à realidade, mas de compreender como ele é produzido por ela — e como pode também transformá-la. A escuta, portanto, é sempre dialética. O território, o tempo e a cultura moldam a fala e atravessam quem ouve.
Freud, apesar de suas contradições, já apontava: ninguém escapa do próprio inconsciente. O analista, para ele, só pode escutar o outro se também se escuta. O dispositivo analítico é campo de implicações mútuas — não há neutralidade no ato de escutar. Toda escuta é também exposição.
No trecho de O Homem e Seus Símbolos, Jung desfaz qualquer pretensão de superioridade de quem intervém, escuta ou analisa: “Não se deve presumir que o analista seja um super-homem, acima das diferenças, apenas porque é um médico, conhecedor de uma teoria psicológica e de uma técnica correspondente.”
Aqui, Jung nos convida à desidealização do saber técnico. Ele nos lembra que teoria e técnica são instrumentos parciais diante da vastidão da alma humana. “O médico só pode se considerar superior se tiver a pretensão de que sua teoria e sua técnica são verdades absolutas, capazes de abarcar a totalidade da psique humana.”
É nesse horizonte que a prática de Nise da Silveira se inscreve como gesto revolucionário: ela recusou os métodos de contenção e violência psiquiátrica, e apostou no encontro real com a subjetividade de pessoas diagnosticadas com sofrimento mental grave. Inspirada por Jung, Nise viu na arte a possibilidade de escutar aquilo que não cabia em palavras: os símbolos, as imagens e os arquétipos que emergem do inconsciente coletivo.
Para Jung, o inconsciente coletivo é um fundo compartilhado da psique humana — feito de imagens primordiais, experiências arquetípicas e saberes ancestrais. Ele não é passivo nem silencioso: ele fala, sonha, cria e resiste. Ao confiar na expressão simbólica dos pacientes, Nise nos ensinou que o cuidado não pode ser reduzido à técnica: ele precisa escutar os mitos, os sonhos e os traços de humanidade que atravessam a história de todos nós.
É nesta dúvida que mora a potência: a possibilidade de sermos afetados, implicados, comprometidos.
O encontro entre duas existências não pode ser reduzido a um modelo.
Carl Rogers já dizia que escutar alguém exige presença genuína. Congruência, empatia e aceitação não são meras atitudes técnicas: são modos de se colocar em relação. A escuta só acontece de verdade quando se dá entre pessoas, e não entre funções.
Paulo Freire nos lembra: toda prática é política. Toda escuta tem um lugar de onde parte, e um mundo que atravessa quem escuta. “Ninguém educa ninguém. Ninguém se educa sozinho. Os homens se educam em comunhão.” Da mesma forma, ninguém transforma ninguém — se não estiver também disposto a se transformar.
Frantz Fanon e Neusa Santos Souza apontam que a escuta tem cor, história e território. Não há sofrimento psíquico fora da colonialidade, da racialização, das violências de classe. Uma escuta que se pretende neutra é, muitas vezes, apenas mais uma forma de silenciamento. A neutralidade, nesse contexto, é privilégio disfarçado de método.
A Psicologia Comunitária da América Latina recusa essa despolitização. Ignacio Martín-Baró propõe uma psicologia da libertação: enraizada nos povos e não nos manuais. Silvia Lane amplia essa proposta no Brasil, convocando uma ciência a serviço do povo, da transformação e da justiça. Ela dizia: "A revolução ética não é um indivíduo que vai produzir. É a sociedade, é a cultura. Se a maioria decidir, a revolução acontece."
Nita Tuxá e Geni Nunes, vozes indígenas e insurgentes, nos lembram que a escuta também fala outras línguas — as línguas da terra, da ancestralidade, dos cantos e dos encantos. Uma psicologia que ignora os povos originários não escuta: coloniza.
No centro de tudo isso, está a ética. Não como um código rígido, mas como prática histórica, viva, construída por muitas mãos e atravessada pelos territórios. A construção do vínculo — com suas regras, limites e desafios — é um dos eixos da nossa ciência. E não existe vínculo real sem implicação. Não existe técnica que nos proteja da nossa própria humanidade.
Porque quem intervém também se transforma.
Porque toda escuta é também escuta de si.
Porque não há encontro neutro, nem escuta que aconteça de fora.
Autora: Mariane Regina Salles Panek
@panekpsi
Psicóloga Comunitária
CRP 08/32713