Em 2004, na Praça da Sé, em São Paulo, sete pessoas em situação de rua foram assassinadas brutalmente enquanto dormiam. Esse massacre não foi exceção, expressa uma lógica histórica de extermínio que marca essa população como descartável. Desde sempre, os poderosos reduzem o povo de rua à condição de “menos que humano”, como se tivesse escolhido uma vida “não produtiva” e, por isso, fosse indigno de direitos, identidade e voz. Essa narrativa sustenta a marginalização: se são vistos como “sem opinião, sem história, sem perspectiva”, tornam-se os primeiros alvos de políticas fascistas e higienistas.
Ninguém está na rua por uma única razão. O que leva à situação de rua são múltiplos contextos, desemprego, violência doméstica, rompimentos familiares, luto, racismo, desigualdade, doença, despejos, ausência de políticas habitacionais e outros fatores estruturais. E quando o corpo passa a viver a rua, passa também a experimentar outras temporalidades e modos de existir, mas em um espaço de extrema vulnerabilidade, onde a violência do Estado e o preconceito se tornam rotina.
Historicamente, a população em situação de rua é usada como laboratório: sobre ela testam políticas de internação compulsória, segregação e criminalização que, mais cedo ou mais tarde, atingem toda a classe trabalhadora. A ironia cruel é que parte dessa própria classe, imersa no preconceito produzido pela burguesia, defende tais medidas, acreditando que o “problema” está no povo de rua, sem perceber que o alvo final é sempre o trabalhador.
Em Curitiba, desde o início do inverno, pelo menos duas pessoas em situação de rua já morreram de frio. Essa tragédia evidencia que o debate não pode se concentrar apenas no uso de substâncias. Ao ouvir essas pessoas, percebemos que suas vidas são atravessadas por diversas questões. Reduzir a rua a um problema de drogas é uma mentira deslavada. O que precisamos são programas consistentes que atuem nas necessidades imediatas, de médio e longo prazo, aliados a pesquisas públicas que permitam compreender profundamente os elementos que o Estado precisa enfrentar.
Defendemos a RAPS (Rede de Atenção Psicossocial) e o SUAS (Sistema Único de Assistência Social), que incluem dispositivos fundamentais como o Consultório de Rua. Em Curitiba, boa parte das políticas voltadas ao povo em situação de rua está sob responsabilidade da FAS (Fundação de Ação Social), cuja gestão é marcada por fragilidades e negligências acumuladas. Nesse vácuo, cresce a defesa da criminalização dessa população, com projetos nas Câmaras de Vereadores de Curitiba, Londrina e outras cidades do Paraná que beiram políticas fascistas de higienização social.
A extrema direita insiste nesse ataque porque tem interesses claros: transformar pessoas em situação de rua em commodities para comunidades terapêuticas, onde a dor e a exclusão se tornam fonte de lucro. Essas comunidades acumulam denúncias de tortura, violações de direitos e trabalho escravo, repetindo o que os manicômios sempre fizeram ao longo da história. Não é “cuidado”, é negócio.
Em Curitiba e Londrina, avançam projetos que atacam diretamente a população em situação de rua. Na capital, vereadores defendem a internação compulsória e o Projeto RITA, que impõe trabalho obrigatório e sanções a quem recusar. Já em Londrina, a vereadora Jessicão aprovou medidas que proíbem a doação de alimentos em vias públicas, impedem que pessoas durmam ou se higienizem em praças e autorizam a internação involuntária. Todas essas propostas criminalizam e controlam a vida de quem está em situação de rua, em vez de garantir direitos como moradia, saúde e dignidade. São políticas higienistas que abrem caminho para práticas fascistas, com representantes lucrando politicamente da dor e vulnerabilidade, agitando bandeiras de “ordem” e “segurança” enquanto atacam direitos humanos básicos.
O que está em jogo não é “cuidar do povo de rua”, mas reforçar uma política de exclusão e repressão que alimenta o autoritarismo e serve de ensaio para o controle de toda a sociedade. Nossa memória da Praça da Sé é também nosso chamado à luta: lutar contra o genocídio silencioso da população em situação de rua é lutar contra o fascismo e contra o sistema que produz miséria e tenta dividir a classe trabalhadora, usando esse povo como bode expiatório, uma política que carrega as marcas de uma sociedade historicamente escravagista. Nossa resposta precisa ser organizada e nas ruas, ao lado de quem sofre.
Mariane Regina Salles Panek
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Psicóloga Comunitária
CRP 08/32713