Nem sempre a infância existiu como a conhecemos hoje. Durante séculos, foram tratadas como parte da força produtiva, sendo mão de obra barata, inseridas desde cedo nas lavouras, fábricas e oficinas. As classes dominantes sempre se beneficiaram da vulnerabilidade da infância.
Historicamente, crianças trabalham lado a lado com os adultos para garantir a sobrevivência familiar. Repetia-se um ciclo sem fim.
O que as crianças aprendiam, era vivendo em um mundo de gigantes, observando os adultos e repetindo o que viviam. Como ninguém havia vivido plenamente a infância, também não se sabia o que era ser criança e trabalhadores reproduziam o que haviam vivido na própria pele, sem consciência sobre ensinar e cuidar, nem tempo ou espaço para refletir sobre isso. Mas, Essa realidade não era natural nem universal. Foi importada com a colonização, junto com a escravidão, a exploração do trabalho e a lógica produtiva que transformava humanos em mercadoria. Cerca de 775 mil crianças africanas foram escravizadas e trazidas para o Brasil nos primeiros cinquenta anos do século XIX.
“No fim da era escrava havia uma percepção geral, por parte dos mercadores, de que as crianças eram preferidas por serem mais maleáveis que os adultos, e poderiam ser treinadas em habilidades específicas.”
David Richardson, historiador (BBC NEWS, 2007)
Antes disso, em nosso território, povos originários praticavam outra percepção da infância. Em suas diversas culturas, a criança não é vista como propriedade dos pais, mas uma responsabilidade coletiva e um ser em desenvolvimento.
Mesmo após a limitada abolição da escravatura no Brasil, o trabalho permaneceu profundamente exploratório, e as condições do país continuaram a marginalizar a população negra. As crianças seguiram sendo amplamente exploradas, e uma das mais afetadas pela herança podre da invasão colonial. Em resposta a isso, entre 1880 e 1930, na Europa e no Brasil, mulheres e crianças operárias organizaram greves contra jornadas exploratórias, baixos salários e exploração infantil, fortalecendo a luta pelos direitos da infância e semeando futuras leis de proteção.
Mas, foi apenas com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990, que o Brasil passou a reconhecer oficialmente crianças e adolescentes como sujeitos de direitos. resultado de um longo processo de mobilização social durante o período de redemocratização, após horrores da ditadura.
O relatório “Infância Roubada”, da Comissão da Verdade “Rubens Paiva”, revela que muitas crianças, filhas e filhos de militantes políticos, foram sequestradas, mantidas em cárceres clandestinos, privadas do convívio familiar e, em diversos casos, torturadas ou testemunhas da tortura e assassinato de seus pais.
"Muitas das crianças que aqui tratamos, filhas de militantes políticas(os) sequestradas(os), foram mantidas em cárceres clandestinos, nascidas em cativeiros, torturadas ou ameaçadas de serem submetidas a torturas, algumas foram arrancadas dos braços de suas mães, impedidas de serem amamentadas e afagadas, outras chegaram a ser torturadas mesmo antes de nascer, ou assistiram às torturas em seus pais ou, então, viram os pais serem assassinados. Quase todas eram filhas e filhos de mulheres militantes políticas." Infância Roubada, Crianças atingidas pela Ditadura Militar no Brasil (ALESP, 2014)
Por isso, a infância permanece sendo uma construção ideológica em disputa.
Apesar dos avanços legais, sociais e o avanço de consciência sobre a infância, os direitos das crianças continuam sendo violados e a proteção integral ainda é um trabalho constante e permanentemente ameaçado pela ala conservadora, fantoches dos interesses da burguesia. As instituições dedicadas à proteção da infância têm sido cada vez mais enfraquecidas, penetradas por discursos religiosos que legitimam a violência infantil, colocando as crianças como propriedade de seus genitores para servirem de mercadoria da burguesia, enquanto seus corpos e afetos se tornam fontes de lucro e capital ideológico.
Essa estratégia é acompanhada do avanço da exploração e da violência, e não é atoa, 70% dos casos de abuso sexual ocorrem dentro de casa, tendo meninas como 87% das vítimas. Enquanto isso, setores conservadores tentam impor a gestação forçada a vítimas de estupro, transformando tanto a criança violentada quanto a criança gestada em objetos de interesse do capital.
Enquanto isso, o trabalho infantil apresenta retrocessos históricos atingindo mais de 1,6 milhão de crianças no Brasil, em sua maioria negras. que também são as maiores vítimas da guerra brasileira, ass4ssin4d4s pela polícia militar.
Por isso, para além de reconhecer a criança como uma responsabilidade coletiva, sustentada por uma complexa estrutura material e afetiva, é preciso defender seus direitos de forma organizada, crítica e combativa. Enquanto o capitalismo existir, as crianças seguirão alvo de exploração e controle, pois seus corpos e afetos estão no centro das disputas de poder e lucro. Seu sofrimento é produzido e estratégico para a burguesia, já que uma criança com estrutura e direitos tem menos chances de ser submissa à lógica do capital quando adulta.
Mariane Regina Salles Panek
@panekpsi
Psicóloga Comunitária
CRP 08/32713