A finitude e a compreensão do trauma coletivo em tempos de crise

Como uma viagem em um submarino que você adentra em diversas marés, podemos navegar por um trauma coletivo ao observarmos suas semelhanças com os processos individuais, como um cientista que observa um aquário para compreender aspectos do Oceano. 

O cérebro por trás da Psicologia Analítica, Carl Jung, defende que ao nos tornarmos mais conscientes de nós mesmos, começamos a reduzir a camada do inconsciente pessoal que recobre o inconsciente coletivo. Isso significa que estamos nos abrindo para uma compreensão mais ampla e profunda do mundo que nos rodeia, e não mais limitada por interesses egoístas. Ao fazer isso, começamos a experimentar uma consciência mais livre e expandida, capaz de se relacionar com o mundo de maneira mais objetiva e significativa. 

Essa consciência, quando ampliada, também nos permite transcender alguns conceitos antes vistos como verdades absolutas, e nos conectar com o mundo ao nosso redor de uma maneira mais autêntica. Quando ficamos mais conscientes e aumentamos nossa sintonia com os acontecimentos ao nosso redor, podemos criar maneiras mais significativas e satisfatórias de existir, ao invés de nos sentirmos presos em ciclos repetitivos e exploratórios. Refletindo sobre a pandemia, percebo claramente a separação entre o antes e o depois dela. Durante esses anos, precisamos nos reinventar e essa mudança teve um impacto profundo em nossa consciência coletiva, ainda em processo de amadurecimento. 

Revi uma notícia que anunciava o início da pandemia, e isso me levou de volta aos momentos que antecederam um isolamento sem precedentes, e que ainda não conseguimos elaborar completamente. Essa conjuntura  tornou tudo diferentemente politizado desde então. Para tal geração, este foi um momento único de catarse social, algo que nunca tínhamos experimentado antes. As gerações anteriores estavam lidando com as consequências recentes do pós-ditadura e, antes disso, da colonização, e embora locais do mundo tenham passado por situações semelhantes, as pessoas que de fato vivenciaram o COVID-19 nunca haviam presenciado uma crise sanitária de tal magnitude e de abrangência mundial.

Como resultado, evitamos reavivar um passado ainda recente e doloroso, em prol da sobrevivência que existir em um momento histórico neoliberal exige. 

Mas, nossos olhos se voltaram para eventos históricos um pouco mais distantes, porém, semelhantes (movimentos fascistas mundiais, ditaduras militares, pós guerras), e começamos a analisar isso de forma estrutural. No futuro, outras gerações distantes o suficiente do trauma da pandemia serão capazes de olhar para esse momento com um olhar ainda mais cuidadoso e representativo, e sabemos que esse repertório já está em construção. 

Mas, como podemos olhar de forma micro & macro?

SE ACONCHEGUE NA VIAGEM

Para entendermos essa forma de análise, vou começar por uma questão social que se repete e possui diversas formas de acontecer, mas, independente disso, é uma experiência afetada pelo contexto sócio histórico cultural em que o sujeito vive: o luto.

A morte e o luto também nos marcam a partir das nossas experiências concretas de classe, raça, gênero, territorialidade. Porque somos sujeitos singulares, vivemos e morremos de diferentes maneiras; porque situados em uma sociedade forjada pelas assimetrias dos moldes capitalistas, vivemos e morremos de formas profundamente desiguais. (Ferreira, 2021, pág 11)

Para compreender esse fenômeno considerado um tabu no ocidente, os convido a conhecer um pouco a cultura mexicana com relação ao fim da vida. O trecho abaixo é de uma reportagem de Gustavo Cheluje:

O clima de carnaval carioca (sem exageros) dá o tom das comemorações do "Dia dos Mortos", ou "Día de los Muertos", no México, evento que dura 48 horas (entre 1º e 2 de novembro) e, antropologicamente, é um retrato fiel do significado da morte, e do luto, para a sociedade mexicana: festa, reencontro e celebração, em um evento de mais de três mil anos originário de civilizações pré-hispânicas. Lembra o filme "Viva", premiado com o Oscar em 2019. (Vitória, Rede Gazeta, 2021).

De acordo com a reportagem, o objetivo da celebração é confirmar para os mortos que os vivos estão bem e felizes. 

Por isso, há festas com música, comida e bebida. Em contraste com a ideia cristã de luto, choro e silêncio, a celebração é uma forma de afirmar a vida. Em termos da psicologia social, o jornalista sugere que a celebração da vida é uma resposta natural à presença da morte, algo que é universalmente humano. 

Em contraste com a ideia cristã de luto, choro e silêncio

Durante grande parte da história, a Igreja teve um papel significativo na influência política e moral em muitos países do mundo. O cristianismo, em particular, influenciou profundamente a moralidade e a ética ocidentais, e suas doutrinas foram frequentemente usadas para justificar ações políticas.

Desde o período medieval, a Igreja Católica desempenhou um papel importante na política europeia. De acordo com o texto de Ravele Félix, na Idade Média a Igreja era a maior autoridade religiosa e política, exercendo grande poder e influência sobre os monarcas europeus. O Papa tinha o poder de excomungar reis e governantes que se opusessem a ele e, por sua vez, os governantes buscavam o apoio da Igreja para legitimar seu poder. Isso resultou em várias guerras religiosas, como as Cruzadas e as guerras de religião da Reforma. Além disso, a Igreja também influenciou a moralidade, estabelecendo padrões e crenças sobre o comportamento humano e o que era aceitável ou não na sociedade. 

As doutrinas cristãs foram (e ainda são) usadas para justificar a moralidade e a ética em muitas culturas ocidentais, incluindo a proibição do aborto, da pena de morte e a forma de ver o divórcio. Isso também se estendeu à sexualidade, à concepção de família e gênero, às relações entre homens e mulheres e, claro, sobre nossa forma de ver a morte. (Politize, 2022) 

A relação entre o cristianismo e as religiões orientais foi frequentemente conturbada ao longo da história. Desde o início do cristianismo, houve um confronto com o judaísmo (a religião da qual o cristianismo se originou). No entanto, as tensões com as religiões orientais se agravaram mais tarde, com a expansão do cristianismo para outros continentes, o mesmo processo aconteceu com religiões de matrizes africanas, que foram "demonizadas". (MEC, 2013) 

Uma das principais fontes de conflito entre o cristianismo e as religiões orientais é a diferença de crenças e práticas religiosas. Enquanto o cristianismo se baseia na crença em um único Deus e na salvação através da fé em Jesus Cristo, muitas religiões orientais, como o hinduísmo, o budismo e o confucionismo, possuem várias divindades e/ou não seguem um conjunto de crenças rígidas como o cristianismo. Além disso, as ditas "missões cristãs" frequentemente foram vistas como uma ameaça à cultura e às tradições locais, pois eram um braço do colonialismo europeu. 

Quem também sofreu com a imposição colonialista do Cristianismo, foram as pessoas sequestradas no continente africano e escravizadas no Brasil, pois, foram impedidas de praticar suas tradições religiosas de origem em solo brasileiro. A situação de opressão a que foram submetidos os negros africanos no Brasil levou à desintegração de suas tradições culturais, que eram historicamente consolidadas. Como resposta a esse desmoronamento, eles refizeram suas tradições no novo continente, resultando em uma nova configuração de suas religiões de matriz africana, que foram influenciadas e sincretizadas com outras culturas com as quais entraram em contato no Brasil (que hoje conhecemos como Umbanda, Candomblé, Quimbanda, entre outras). Precisaram assimilaram traços culturais das religiões dominantes, principalmente da religiosidade católica, para amenizar a perseguição simbólica. Isso resultou na formação de Irmandades, como as Irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, além dos cultos afro-indígenas

Agora, com o contexto estabelecido, podemos retomar o conceito que todas essas religiões perseguidas pelo cristianismo possuíam em sua distinção: Isso mesmo, o conceito de "morte". Ou melhor, de finitude.

O QUE É A FINITUDE?

É muito comum, apesar de não ser uma regra absoluta, que diversas religiões orientais, africanas e/ou que não sejam monoteístas, vejam a alma como algo muito mais complexo, que acaba abrangendo toda uma ancestralidade, além de muitos cultuarem a própria natureza de forma sagrada. Geralmente, veem a morte como um processo natural e cíclico, mas não o fim de tudo e muitas não trabalham com o conceito de um Deus punitivista. Acredita-se na reencarnação, em que a alma pode passar por diversas vidas, e a morte é vista como uma transição para uma nova existência, com diferentes possibilidades. Por isso, também é comum haver rituais e práticas que visam facilitar a passagem do indivíduo para o próximo ciclo de vida.

Já o cristianismo tradicional geralmente tem a visão da morte como um momento de transição em que a alma é julgada por suas ações em vida. Essa visão está enraizada na doutrina do céu e do inferno, em que a alma é recompensada ou punida de acordo com a sua relação com Deus e a observância dos ensinamentos religiosos. Nessa perspectiva, a morte é vista como uma oportunidade para alcançar a "salvação eterna" e estar na presença de Deus. Também acreditam que o fim dos tempos está próximo, e haverá uma ressurreição corporal e quase literal, mas apenas para os "fiéis cristãos". 

Essa visão pode limitar a compreensão e a aceitação de outras concepções sobre a morte presentes em diferentes culturas e religiões, desvalorizando a pluralidade e a riqueza das experiências humanas. A imposição de uma visão específica sobre a morte como "verdade absoluta" pode ser vista como uma forma de negar ou marginalizar outras formas de compreender esse aspecto da existência humana.

Além disso, a ênfase excessiva na vida após a morte pode levar a uma negligência dos cuidados e atenção às questões terrenas e às necessidades dos indivíduos durante sua vida neste mundo. Ao focar demasiadamente na busca da "salvação eterna", as pessoas podem se sentir coagidas a permanecer em cenários religiosos insalubres com medo do "castigo divino". Outra crítica é a ideia de julgamento divino, que pode gerar ansiedade e medo em relação à morte, ao invés de promover um entendimento mais compassivo e acolhedor desse estágio da existência. Uma visão excessivamente punitiva pode contribuir para uma experiência de espiritualidade baseada no medo e na submissão, em vez de promover a compreensão, o amor e o cuidado mútuo entre as pessoas. 

Isso se estende à nossa compreensão ocidental de luto, já que o que prevalece nessa experiência acaba sendo a culpa e a incerteza. Não estou me referindo as saudades que sentimos de quem parte, mas da concepção que temos dessa fase da existência, que é tão natural quanto o nascimento. Não é possível falar de luto sem abordar as concepções sociais e religiosas de morte, propósito e ancestralidade. Em uma perspectiva micro, olhamos para o luto como uma experiência individual e pessoal. Nesse contexto, focamos nas emoções, sentimentos e processos psicológicos vivenciados por uma pessoa em luto.

Analisamos como o indivíduo lida com a perda, suas reações emocionais e gatilhos, os estágios do luto (como negação, raiva, barganha, depressão e aceitação), os mecanismos de enfrentamento e o processo de adaptação à nova realidade sem o ente querido. Por outro lado, em uma perspectiva macro, consideramos o luto como uma experiência social e culturalmente construída. 

Nesse nível, analisamos como as normas, valores e crenças da sociedade e cultura em que o luto ocorre influenciam as experiências individuais de perda. Consideramos os rituais e práticas funerárias, as expectativas e regras sociais em relação ao luto, as representações simbólicas da morte e do luto na mídia e na arte, e os sistemas de apoio disponíveis para os enlutados (como instituições religiosas, grupos de apoio e serviços de saúde mental.)

A análise do luto em níveis micro e macro permite uma compreensão mais completa e abrangente desse processo. Isso nos ajuda a entender como as experiências individuais de luto são moldadas e influenciadas por fatores sociais, culturais, econômicos e políticos mais amplos. Ao mesmo tempo, também nos permite considerar as particularidades e singularidades de cada experiência, reconhecendo a importância das histórias individuais e das emoções pessoais vivenciadas durante esse período.

NO FUTURO, OLHARÃO PARA A COVID-19 LONGE DOS SENTIMENTOS QUE AINDA ALIMENTAMOS. IRÃO VISUALIZAR DE FORMA DISTANTE, E APENAS PODERÃO IMAGINAR COMO NOS SENTIMOS AO SUSTENTAR A SOBREVIVÊNCIA PÓS UMA PANDEMIA MUNDIAL DE 3 ANOS EM MEIO À ASCENSÃO DO NEOLIBERALISMO, QUE NÃO ESCRAVIZA APENAS OS NOSSOS CORPOS, MAS TAMBÉM NOSSAS MENTES.

Pandemias são uma uma experiência social de muito impacto psicológica e historicamente. Esses momentos nos permitem analisar a relação da sociedade com as formas de poder contemporâneas através das políticas públicas de saúde e segurança implementadas, além da comunicação, pela forma como a mídia apresenta a conjuntura. Esses períodos atenuam as desigualdades sociais e econômicas, além das desigualdades raciais e de gênero que afetam desproporcionalmente grupos marginalizados. 

"Só depois da epidemia da Gripe Espanhola houve a criação, em janeiro de 1920, do Departamento Nacional de Saúde Pública no Brasil, que era uma antiga reivindicação dos médicos sanitaristas. Temos que lembrar que os serviços públicos na ocasião eram precários e o saneamento, inexistente. A ocorrência da Gripe afetou ainda o coração da cultura carioca. Depois da longa reclusão, o Carnaval de 1919 foi considerado uma grande festividade. O povo participou intensamente e foi às ruas, com blocos, carros alegóricos e marchas com versos sobre a epidemia. Era como se estivessem comemorando o fato de estarem vivos e o fim de uma longa quarentena. " (Motta, 2020)

Assim como no campo social, individualmente também não vemos mais as coisas com os mesmos olhos. Muitos perderam pessoas queridas, além de terem tido sonhos e relações de trabalho interrompidas. 

O Brasil ficou em 14ª posição no ranking mundial de mortes proporcionais pela covid-19, com 3.214 mortes pela doença a cada milhão de habitantes. (Poder 360, 2022). Um relatório do portal de rastreamento de demissões em massa, Layoffs.fyi (citado pelo Yahoo) apontou que somente nos primeiros 15 dias de 2023, 24.151 mil pessoas foram demitidas por 91 mil empresas de tecnologia ao redor do mundo. De acordo com os dados do portal, a Amazon, Meta e Salesforce lideraram a lista de demissões, com 18 mil, 11 mil e 8 mil funcionários demitidos entre novembro de 2022 e janeiro de 2023, respectivamente.

Um dos motivos pela crise, de acordo com as empresas, se deu pela "rápida expansão das empresas durante a pandemia de COVID-19, que não se manteve após a retirada das medidas sanitárias, causando uma queda nos lucros e a baixa nas ações das companhias de tecnologia."

Juntas, a Amazon e a Salesforce anunciaram na primeira semana do ano um corte de mais de 25 mil empregos,  a justificativa dada é, no mínimo curiosa, quando consideramos que a empresa Amazon registrou em 2022 a segunda posição no ranking global das empresas mais ricas do mundo, sendo uma das que mais faturou durante a pandemia. (Fortune, conforme citado em Tecnoblog, 2022) 

Ainda estamos próximos de tudo e a dor ainda é latente. As dívidas ainda existem, e a concentração de renda está ainda mais alta, em um país que viveu recentemente um upgrade de ditatura através do governo Bolsonaro. Hoje, graças aos avanços tecnológicos e à pesquisa acadêmica de tantos trabalhadores, temos à nossa disposição uma grande quantidade de informações e recursos para aprofundar nossa compreensão desses temas e suas relações. De acordo com relatório publicado anualmente pelo banco Credit Suisse, 49,6% da riqueza total do Brasil está nas mãos de 1% da população. Os dados mostram uma piora quando se comparam os últimos 20 anos. (Metrópoles, 2021) 

Quando sentir aquele desespero por não saber para onde sua vida está indo, e ao precisar reconstruir suas visões políticas, de vida e morte, bem como de certo e errado, não esqueça que grande parte dos responsáveis pela sua falta de bem estar e estabilidade, são os mesmos que nos contratam estrategicamente quando estamos frágeis e sem escolha, devido aos seus monopólios de mais valia. Assim, aumentam seus lucros em cima do nosso desespero e da nossa exploração. 

Compreender cada aspecto desse mecanismo, tanto de forma micro como de forma macro, não se trata apenas de política ou participação social, mas também de sobrevivência. Um novo mundo se iniciou em 2019, e agora nós podemos e devemos reagir com a mobilizaçao popular.

Autora: Mariane Regina Salles Panek
@panekpsi
Psicóloga Comunitária
CRP 08/32713